Uma história

Por enquanto, só tem uma mesmo. Se aparecerem outras, eu vejo o que eu faço aqui.



Por volta das nove e meia da manhã, ocorre o que vem ocorrendo em quase todas as manhãs: o final do seu sono foi interrompido pelo piano da introdução de “Pra Ser Sincero”, dos Engenheiros do Hawaii, trecho que utilizava como toque de celular, para horror de quase todos seus amigos, aqueles insensíveis. Perderia sua parte preferida do repouso, o quase-acordar, sempre acompanhado de um sonho erótico que conseguia dirigir em estado de semiconsciência, orientando as atrizes, alterando as locações, adaptando o roteiro.

Resignado e acompanhado por sua ereção, se vê na obrigação de atender a ligação, já que está aguardando respostas de entrevistas de emprego e a situação está difícil, são milhões de desempregados e desalentados, o mercado de trabalho exige vigilância constante. O cavalo não passa selado duas vezes, dizia o especialista na rádio de notícias. Clica o botão verde que saracoteia pela tela do aparelho, indicando sua concordância em se comunicar com o interlocutor, e já de cara recebe a maldita questão:

- Bom dia, eu falo com a Rosa?

Rosa era a provável proprietária anterior do número com o qual havia sido contemplado, após se mudar para a metrópole em busca de oportunidades, emoção, novidade etc., essas razões difusas com as quais a gente justifica as mudanças quando não sabe tão bem assim o que deseja. Recebera pouquíssimos telefonemas direcionados para ele mesmo. A maior parte dos contatos exigia falar com Rosa, buscando pagamento de dívidas pendentes, oferecendo a renovação de serviços ou, não raro, apenas perguntando onde ela estava.

Essa questão visitava sua mente também: onde estaria Rosa? Por que abandonou o número, uma pessoa tão querida, com uma rede sólida de serviços e conveniências na cidade, pronta para aproveitar tudo o que ela tem para oferecer? Seriam as dívidas? Estaria farta do caos urbano, a poluição, a solidão, a falta de segurança – haveria sido vítima de um sequestro relâmpago e estava traumatizada? A faca penetrou um órgão vital? Um dia, após uma noite de sono insuficiente, chegou a buscar “rosa morta assalto” na internet, levando cerca de dois segundos para compreender devidamente a futilidade da iniciativa.

É difícil identificar mudanças sutis em si mesmo. A pessoa em dieta não identifica as 200 gramas que perde diariamente ao se confrontar perante o espelho antes do banho; o resultado visível do esforço aparece apenas algumas semanas depois, quando a calça recém-comprada não se sustenta na cintura e a felicidade do emagrecimento é levemente maculada pela tristeza por ter que gastar centenas de reais em novas roupas ou no ajuste das antigas, está tudo um absurdo, lembra quando uma calça jeans era tipo sessenta reais, não sei onde vamos parar. Claro que a pessoa pode monitorar sua perda de peso diariamente com uma balança e uma planilha de Excel, mas não se recomenda, não é assim que o corpo humano funciona. Psicologicamente, é até contraprodutivo.

Enfim.

O fato é que ele não identificou as mudanças sutis em si mesmo e naquela manhã, esfregando o rosto, com um volume ainda visível em sua calça de moletom puída, foi surpreendido por sua própria resposta:

- Opa, é a Rosa sim. Quem fala?

Havia feito de tudo. Respondeu calmamente todas as ligações, informando que não, não era a Rosa. Pediu o seu descadastramento a todas as instituições que entraram em contato, recebendo garantias dos atendentes robóticos de que providências seriam tomadas, para que na semana seguinte uma outra pessoa com a mesma voz e repetindo o mesmo texto ligasse mais uma vez em busca da desconhecida floral. Ao invés de desistirem com as negativas, os telefonemas se multiplicavam. As empresas de sempre ligavam com mais frequência. Novas empresas se somavam a elas, em clara tática de blitzkrieg: vamos quebrar o espírito deles, uma hora alguém vai entregar o esconderijo dela. Rosa não vai conseguir fugir por muito tempo.

Em certo momento, seu cérebro compreendeu que a resistência era inútil. Estava sob cerco e os adversários não desistiriam. Tinha decisões importantes a tomar. Uma opção envolvia se dirigir ao shopping mais próximo e travar uma batalha com os atendentes da operadora de telefonia celular em busca de um novo número, ziguezagueando por ofertas de planos doideira e aparelhos absurdos, fugindo de cláusulas contratuais confusas e burocracia incompreensível, tudo isso para talvez completar a troca e se vir em breve confundido com um Jonathan, uma Isabelle, um Robson, uma Valentina. Parecia uma opção insensata.

A outra possibilidade era tornar-se Rosa. Não como brincadeira ou como artifício para tentar retomar sua paz telefônica, mas como resposta a algo que cresceu com vagar em seu âmago: naquele momento, ele realmente se sentia Rosa. Enfrentaria a confusão da interlocutora, que decerto não esperava que a mulher que buscava tivesse uma voz tão grave, mas estamos no século XXI, os tempos são outros, apesar do momento não ser propício para a tolerância, mas esses caras vão passar, o trem do progresso é imparável. Exigiu informações sobre o problema em questão, o atraso na quitação de uma fatura do cartão de crédito contratado junto a uma loja de departamentos. “Tudo bem, senhora”, respondeu a atendente, deixando aparecer no “senhora” uma parcela da confusão que tomava sua mente, “só preciso conferir algumas informações antes de iniciar o atendimento”:

- CPF, por favor? Nome da mãe? Data de nascimento?

Não tinha nada disso. Não pensou nos detalhes. Na verdade, não pensou em nada.

Pensou em como poderia obter os dados, no amigo que trabalhava no Detran, nos criminosos que vendiam pen drives nas calçadas do centro com o resultado de ataques hackers nas mais diversas bases de dados. Ao fim dessa reflexão, que durou cerca de sete segundos e foi interrompida por um “Senhora?” mais confiante por parte da atendente, desligou o telefone, balbuciou um “tomar no cu, viu” e foi fazer o primeiro café do dia.

Volta.